Viver pelo bem que existe no mundo!

Na verdade nem deveríamos estar aqui, mas estamos. São como nas grandes histórias. As que tinham mesmo importância. Eram repletas de escuridão e perigo. E às vezes, você não queria saber o fim.... Porque como podiam ter um final feliz? Como podia o mundo voltar a ser o que era depois de tudo isso? Mas, no fim, é só uma coisa passageira, que logo se transformará. Um novo dia virá. E quando o sol brilhar, brilhará ainda mais forte. Eram essas as histórias que ficavam nas lembranças, que significavam algo. Mesmo que você fosse pequeno demais para entender o por quê. Mas acho, que entendo, sim. Agora eu sei. As pessoas dessas histórias tinham várias oportunidades de voltar atrás mas não voltavam. Elas seguiam em frente, porque tinham no que se agarrar. - E nós, no que devemos nos agarrar? No bem que existe nesse mundo, pelo qual vale a pena lutar. Senhor dos Anéis.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A DESPEDIDA DO PROFETA

Então, já era noite.
E Almitra, a vidente, disse: “Bendito seja este dia e este lugar e teu espírito que nos falou.”

E ele respondeu: “Fui eu realmente quem falou? Não era eu também um ouvinte?”
Depois, desceu os degraus do templo, e toda a multidão o seguiu. E quando alcançou o seu
navio, subiu ao convés.
E virando-se novamente para a multidão, ergueu a voz e disse:
“Povo de Orphalese, o vento me convida a vos deixar.
Embora não esteja eu tão apressado quanto o vento, todavia devo afastar-me.
Nós, os errantes, que andamos sempre à procura do caminho mais solitário, jamais iniciamos
um dia onde encerramos o dia anterior.
Nunca a aurora nos encontra onde o poente nos deixou.
Mesmo quando a terra dorme, nós viajamos.
Somos as sementes de uma planta tenaz, e é quando amadurecemos e atingimos a nossa
plenitude de coração que o vento se apodera de nós e nos espalha.
Breves foram meus dias entre vós, e mais breves ainda as palavras que pronunciei.
Mas se, um dia, minha voz desvanecer-se em vossos ouvidos e meu amor evaporar-se de
vossa memória, então voltarei a vós.
E com um coração mais fecundo e lábios mais obedientes à voz do espírito, falar-vos-ei de
novo.
Sim, voltarei com a maré.
E embora a morte me oculte, e o grande silêncio me envolva, procurarei novamente vossa
compreensão.
E não procurarei em vão.
Se algo do que vos disse for verdade, essa verdade vos será revelada com voz mais sonora e
em palavras mais acessíveis ao vosso entender.
Vou-me com o vento, povo de Orphalese, mas não descerei ao vácuo do nada.
E se este dia não foi a realização de vossas aspirações e de meu amor, fique ao menos como a
promessa de um encontro futuro.
Transformam-se as necessidades do homem, mas não seu amor, não seu desejo de ver suas
necessidades satisfeitas pelo seu amor.
Sabei, portanto, que voltarei do meio do silêncio supremo.
A neblina, que desaparece ao alvorecer, deixando somente orvalho nos campos, eleva-se,
condena-se em nuvem e cai sobre a terra como chuva.
E não diferente da neblina tenho sido eu.
Na calma da noite passeava em vossas ruas, e meu espírito penetrava em vossas casas.
O pulsar de vossos corações repercutia no meu coração, e vosso hálito flutuava sobre meu
rosto, e assim vos conheci a todos.
Sim, conheci vossas alegrias e vossas mágoas; e quando dormíeis, vossos sonhos eram meu
sonhos.
E muitas vezes estive entre vós como um lago no meio das montanhas. E minhas águas
refletiam os cumes que se elevam em vós, e as vertentes inclinadas, e os rebanhos errantes de
vossos pensamentos e de vossos desejos.
E ao meu silêncio afluíam, como torrentes, os risos de vossas crianças e, como rios, as ânsias
de vossos adolescentes, e quanto atingiam a minha profundidade, as torrentes e os rios continuavam
a cantar.E todavia, algo mais terno que o riso e maior que as ânsias veio a mim: era o ilimitado em
vós, o imenso homem do qual sois meras células e músculos, ele, em cuja cântico, todas vossas
canções nada mais são do que murmúrios indistintos.
É nesse homem grandioso que sois grandiosos.
E foi contemplando-o que aprendi a vos contemplar e amar.
Pois, que distâncias pode o amor atravessar, que não estejam contidas nesta vasta esfera?
Que visões, que esperanças, que presunções podem elevar-se acima desse vôo?
Como um carvalho gigante recoberto de flores de macieira, é o homem imenso que está em
vós.
Sua potência vos liga à terra, sua fragrância vos eleva no espaço, e sua durabilidade vos dá a
imortalidade.
Disseram-vos que, como uma corrente, vós sois tão frágeis quanto vosso elo mais frágil.
Essa é somente a metade da verdade. Vós sois, também, tão fortes quanto vosso elo mais
forte.
Medir-vos pelas vossas pequenezas é avaliar o poder do oceano pela inconsistência de sua
espuma.
Julgar-vos pelas vossas falhas é como censurar as estações pela sua instabilidade.
Sim, vós sois como um oceano.
E embora os navios encalhados sobre vossas costas esperem o fluxo da maré, vós também,
como o oceano, não podeis acelerar vossos fluxos.
E sois também como as estações.
E embora em vosso inverno negueis vossa primavera, a primavera, que descansa dentro de
vós, sorri na sua letargia e não se sente ofendida.
Não penseis que digo essas coisas para que repitais um ao outro: “Ele nos elogiou bastante.
Ele só viu nossas qualidades.”
Eu somente expresso em palavras o que já sabeis em pensamento.
E o que é o saber expresso em palavras senão a sombra do saber sem palavras?
Vossos pensamentos e minhas palavras são ondas de uma memória selada que guarda o
registro de vosso passado, e dos dias em que a terra nos ignorava e ignorava-se a si mesma, e das
noites em que a terra era criada na confusão.
Muitos sábios vieram oferecer-vos sua sabedoria. Eu vim tomar de vossa sabedoria. E eis que
encontrei o que é superior à sabedoria: um espírito em fogo que se alimenta de si próprio e cresce
constantemente, enquanto vós, desatentos a esse crescimento, lastimais a consumação de vossos
dias.
É a vida à procura da vida em corpos temerosos da sepultura.
Não há sepulturas por aqui.
Estas montanhas e planícies são berços e alpondras.
Cada vez que passais pelo campo onde enterrastes vossos antepassados, olhai bem e vereis a
vós e a vossos filhos dançando de mãos dadas.
Na verdade, regozijai-vos muitas vezes sem o saber.
Outros vos têm procurado, a quem, em troca de promessas douradas, só destes riquezas,
poder e glória.
Eu vos tenho dado menos que uma promessa, e, no entanto, fostes mais generosos comigo.
Destes-me uma sede mais profunda de viver.
Certamente não se pode fazer dom maior a um homem do que converter seus desígnios em
lábios ávidos, e toda a vida num manancial.
E nisto consiste minha honra e minha recompensa.
Que toda vez que venho à fonte para beber, encontro a própria água sedenta; e ela me bebe
enquanto a bebo.Alguns dentre vós têm-me julgado demasiadamente orgulhoso e reservado por haver
recusado presentes.
Sou, na verdade, muito orgulhoso para receber um salário, mas não presentes.
E embora me tenha nutrido de bagas entre as colinas, quando me queríeis instalar à vossa
mesa, e tenha dormido nos pórticos dos templos, quando me teríeis abrigado com prazer, contudo,
não foi vossa carinhosa preocupação com meus dias e noites que tornou meus alimentos deliciosos
e povoou meu sono de visões?
Abençôo-vos particularmente por isso.
Dais muito, e nãos sabeis que dais.
Na verdade, a bondade que se mira num espelho converte-se em pedra.
E uma boa ação que se admira a si própria vira maldição.
E alguns dentre vós me acharam distante e embriagado com minha solidão.
E disseram: “Ele se reúne com as árvores da floresta, mas não com os homens.
Senta-se sozinho no cume das colinas e olha do alto para nossa cidade.”
É verdade. Galguei colinas e andei em lugares afastados.
Como vos teria podido ver a não ser de grandes alturas ou de grandes distâncias?
Como pode alguém estar perto se não estiver longe?
E outros dentre vós me chamaram, mas não com palavras, e disseram:
“Estrangeiro, estrangeiro, homem apaixonado pelas alturas inacessíveis, por que habitas nos
cumes onde as águias constroem seus ninhos?
Por que corres atrás do inatingível?
Que tempestades esperas apanhar na tua rede, e que aves vaporosas procuras caçar nos céus?
Vem e sê um de nós.
Desce e satisfaze tua fome com nosso pão e aplaca tua sede com nosso vinho.”
Na solidão de suas almas, disseram todas essas coisas; mas se sua solidão tivesse sido mais
profunda, teriam compreendido que eu procurava somente o segredo de vossa alegria e de vossa
tristeza, e que caçava apenas vossos Eus maiores que vagueiam no espaço.
Mas o caçador era também a caça.
Pois muitas de minhas flechas partiam do meu arco à procura de meu próprio coração.
E aquele que adejava nas alturas era aquele que se arrastava no chão.
Pois, quando minhas asas se desdobravam ao sol, sua sombra na terra era uma tartaruga.
E eu, o crente, era também um cético.
Pois, constantemente, punha meu dedo na minha própria ferida com o propósito de fortalecer
minha crença em vós e aumentar meu conhecimento de vós.
E é com essa crença e esse conhecimento que vos digo: Vós não estais enclausurados em
vossos corpos, nem confinados em vossas casas ou campos.
O que sois reside acima das montanhas e erra com o vento.
Não é algo que rasteja ao sol para aquecer-se ou cava buracos na escuridão para se proteger.
Mas, sim, algo livre, um espírito que envolve a terra e se movimenta no éter.
Se essas forem palavras vagas, não as procreis esclarecer.
Escuro e nebuloso é o começo de todas as coisas, mas não seu fim.
E eu prefiro que vos lembreis de mim como de um começo.
A vida, e todos os seres vivos, são concebidos na névoa e não no cristal.
E que sabe se um cristal não é uma névoa em decomposição?
Quando vos lembrardes de mim, assim gostaria que vos lembrásseis: Que aquilo que parece o
mais fraco e desorientado em vós é, na realidade, o mais forte e decidido.
Não foi vosso fôlego que ergueu e solidificou a estrutura de vossos ossos?
E não foi um sonho que nenhum de vós recorda haver sonhado, que edificou vossa cidade e
modelou tudo o que nela existe?Se vos fosse facultado ver as marés desse fôlego, deixaríeis de olhar para outra coisa, e se vos
fosse facultado ouvir os murmúrios desse sonho, deixaríeis de ouvir todo outro som.
Mas hoje vós não vedes nem ouvis, e é melhor assim.
Um dia, porém, o véu que cobre vossos olhos será retirado pelas mãos que o teceram.
E a argila que obstrui vossos ouvidos será rompida pelos dedos que a amassaram.
Então vereis, então ouvireis, e não deplorareis ter conhecido a cegueira e a surdez.
Pois naquele dia, compreendereis a finalidade oculta de todas as coisas.
E abençoareis as trevas como abençoais a luz.”
Tendo dito essas coisas, voltou-se e viu o piloto de seu navio postado ao leme e fitando ora as
velas desenroladas, ora o horizonte.
E disse: “Paciente, muito paciente, é o capitão de meu navio. O vento sopra, e as velas estão
enfunadas. Mesmo o timão pede que o orientem. Porém, meu capitão espera calmamente pelo meu
silêncio. E esses meus marujos que têm ouvido o coro de oceanos maiores continuam a escutar-me
com a mesma paciência. Agora, não esperarão mais. Estou pronto. O rio já atingiu o mar, e mais
uma vez a grande mãe aperta seu filho contra o peito.
Adeus, povo de Orphalese. O dia já se foi, e está se cerrando sobre nós como o nenúfar se
cerra sobre seu próprio amanhã.
O que aqui nos foi dado, nós o conservaremos.
Mais um curto instante, e minha nostalgia começará a recolher argila e espuma para um novo
corpo.
Mais um curto instante, mais um descanso rápido sobre o vento, e outra mulher me
conceberá.
Meu adeus a vós e à juventude que passei entre vós.
Foi somente ontem que nos encontramos num sonho.
Cantastes para mim na minha solidão, e eu, com vossas aspirações, construí uma torre no céu.
Mas agora, nosso sono fugiu, e nosso sonho desvaneceu-se, e já não é mais a aurora.
O meio-dia nos abrasa, e nossa sonolência transformou-se em pleno despertar, e devemos nos
separar.
Se nos encontrarmos outra vez no crepúsculo da memória, conversaremos de novo e cantareis
para mim uma canção mais profunda.
E se nossas mãos se encontrarem noutro sonho, construiremos mais uma torre no céu.”
Dizendo isso, acenou aos marujos, e eles levantaram ferro, soltaram as amarras e rumaram
para leste.
E um grito reboou da multidão como de um só coração, elevou-se no crepúsculo e voou longe
sobre o mar, qual doloroso apelo de trombeta.
Somente Almitra permaneceu silenciosa, fixando o navio até que desapareceu no nevoeiro.
E mesmo quando todos se haviam dispersado, ela ainda estava lá, sozinha, em pé sobre o
quebra-mar, rememorando no seu coração as últimas palavras de Al-Mustafa:
“Mais um curto instante, mais um descanso rápido sobre o vento, e outra mulher me conceberá."


O Profeta. Gibran Khalil Gibran